Sintaxe histórica (generativa)

Apresentação

A estrutura das frases (sintaxe) e a sua evolução do latim para o português tem sido um dos temas menos estudados na nossa gramática histórica. Aliás, em linguística histórica geral, os estudos sobre mudança sintáctica foram, durante décadas, os que menos interesse despertaram junto dos investigadores. Este facto tem natureza epistemológica: os modelos teóricos segundo os quais se interpretaram as línguas naturais durante o século XIX e até meados do século XX (sobretudo os modelos da neogramática, da geografia linguística e do estruturalismo) construíram as suas descrições de forma indutiva, a partir de amostras de língua falada e de escrita efectivamente produzida. Daí que esses modelos tenham avançado depressa nos domínios da fonética e da fonologia, visto que as línguas têm um número finito de unidades fonéticas e fonológicas. Estas, uma vez inventariadas, são interrogadas quanto às respectivas propriedades, as quais podem passar a ser clara e completamente descritas.

O que se passa no domínio da sintaxe é um fenómeno diferente. Acontece que o conhecimento sintáctico que os falantes têm interiorizado não está inequivocamente espelhado nos enunciados por eles produzidos, quer quando falam, quer quando escrevem, problema este que resulta agravado quando se pensa em textos de épocas passadas. Após se construir uma teoria preocupada com a capacidade de os falantes criarem frases, com a sua imaginação sintáctica (o que só começou a acontecer a partir de 1957, com os trabalhos de Noam Chomsky em teoria generativa), é que foi possível abordar a sintaxe nos seus aspectos históricos. É por essa razão que aqui se vai privilegiar a perspectiva generativa na apresentação da sintaxe histórica portuguesa. A proposta de Chomsky é a de que há um conhecimento linguístico universal, inato, cuja área central é a sintaxe. Em formulação mais recente (a Teoria dos Princípios e Parâmetros), o generativismo concebe a sintaxe como incluindo princípios, comuns a todas as línguas do mundo, e parâmetros, responsáveis pelas grandes variações. Os falantes, que à nascença já dominam os abstractos princípios da sintaxe, vão aprendendo a sua língua materna à medida que compreendem quais são os valores próprios dos parâmetros dessa língua e quais são as propriedades sintácticas que caracterizam as unidades do léxico, as palavras. Esta teoria torna-se incontornável ao se tratar da sintaxe das línguas, quer sincrónica, quer diacronicamente, até porque, até hoje, não surgiu uma alternativa com uma adequação explicativa superior.


Rudimentos de sintaxe generativa

Segundo o generativismo, para se conhecer a sintaxe de uma língua é preciso formular sucessivas hipóteses sobre as operações mentais envolvidas na derivação, ou geração, das suas frases. Na base dessa derivação está um conjunto de escolhas lexicais. No final da mesma, admite-se que as estruturas frásicas, então já criadas, se bifurcam em dois tipos de expressão, ou representação, uma ao nível dos sons (Representação Fonética) e outra ao nível do significado (Forma Lógica), o que dá conta do objecto observável da teoria sintáctica que é o das frases ditas com sentido, as únicas que podem ser compreendidas.

Quando se diz ou se ouve uma frase, dizem-se ou ouvem-se sucessivas palavras. Essa sucessão de palavras é vista pela gramática generativa como o resultado superficial (chamado Sintaxe Visível) de uma articulação dinâmica entre estruturas, algumas das quais são apenas abstractas, não tendo correspondência no léxico das línguas. Para representar graficamente essa fabricação mental das orações e todo o conjunto de estruturas hierarquizadas que ela inclui, sujeitas a princípios e parâmetros que presidem à sua interdependência, a Gramática Generativa concebe uma árvore invertida. Os seus ramos significam vinculações entre estruturas do léxico, com sua categoria morfológica (determinantes, substantivos, adjectivos, advérbios, pronomes, verbos), e as estruturas sintácticas que vão progressivamente integrando, formando constituintes cada vez mais complexos até se chegar à Sintaxe Visível. As unidades do léxico estão na ponta de cada ramo dessa árvore e as suas propriedades sintácticas vinculam-nas aos pontos de ramificação (os nós) para onde os ramos convergem. Cada ramificação apenas pode juntar pares de ramos (diz-se que se trata de ramificação binária) e nunca pode estar isolada (como os ramos vivos, que não podem estar soltos da sua armação botânica). Chama-se projecção a cada um desses nós e as projecções (que podem ser intermédias ou máximas, conforme o seu lugar hierárquico) identificam-se por rótulos que são a abreviatura, em letras maiúsculas, da respectiva designação inglesa. Por exemplo, DP (determiner phrase) é um constituinte que tem como núcleo um determinante D e como seu complemento um nome N. Um constituinte como este homem é uma projecção do núcleo este (que em português ocorre canonicamente à esquerda - é um dos parâmetros do português, ter o núcleo à esquerda), combinado com o complemento homem. A estrutura desta projecção representa-se assim

Entre os diferentes constituintes há, como se disse, relações dinâmicas. Há a possibilidade de o constituinte que se projecta remotamente num determinado lugar hierárquico da frase se deslocar (o termo técnico é Mover) para outro lugar hierárquico. O Movimento dos constituintes obedece a princípios universais (por exemplo, tem de ter sempre um sentido ascendente) e as suas motivações serão invariavelmente morfológicas, pelo menos segundo o quadro teórico do Minimalismo, que é a versão mais recentemente difundida da Teoria dos Princípios e Parâmetros. Isto significa que todos os falantes concebem as palavras do léxico que aprenderam como indissociáveis das suas características morfológicas (dos seus Traços), traços esses que têm de se enquadrar na frase dentro de um contexto coerente, ou seja têm de ser verificados perante os de um par com o qual concordam. Aquela palavra homem é aprendida, por quem fala português, como sendo do género masculino, do número singular e da categoria N (nome) e todos esses seus traços estão presentes quando os falantes portugueses a combinam com outras palavras para formar frases: só a combinam com pares que exijam um nome como complemento, e que tenham também o singular e o masculino como suas características morfológicas. O demonstrativo este é uma das palavras portuguesas que apresenta todos esses traços.

Esta projecção DP é uma das muitas identificadas pela gramática generativa. Algumas das restantes, não todas, por se tratar por vezes de conceitos muito abstractos, são as seguintes:

AP (adjectival phrase) - com um adjectivo como núcleo, seguido do seu complemento, como na expressão cheio de esperanças (cheio é o núcleo).

PP (prepositional phrase) - com uma preposição no núcleo, ex: de esperanças (de é o núcleo).

NP (noun phrase) - com um nome no núcleo, ex: artista de cinema (artista é o núcleo).

VP (verb phrase) - com um verbo lexical (i.e. um verbo que não seja auxiliar) no núcleo e tendo por complemento um argumento temático (i.e.uma entidade que é concebida como sofrendo o efeito de uma acção). Como exemplo, prende o gado (prende é o núcleo e o gado é o complemento que corresponde à ideia de argumento temático ).


Entende-se bem, perante a sumária apresentação aqui feita, que será preciso dominar um vastíssimo vocabulário técnico, os conceitos de uma teoria complexa e um número aceitável de línguas diferentes para se poder entender todo o alcance da teoria generativa e da sua adequação aos problemas sintácticos das línguas. Mas mesmo sem embarcar na aprendizagem desta teoria, capta-se uma sua grande vantagem prática, que é a de os fenómenos sintácticos não serem vistos isoladamente. A teoria generativa busca explicações únicas para características frásicas diversas, tentando ascender, um dia, ao conhecimento sintáctico comum aos falantes de todas as línguas do mundo - a Gramática Universal.

A sintaxe histórica do português, feita no âmbito da teoria Generativa, vai ser aqui exemplificada por um trabalho de Ana Maria Martins, enquadrado na Teoria dos Princípios e Parâmetros (versão Minimalista): Clíticos na História do Português, vols I-II. Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1994 (dissertação de doutoramento).

A autora, para explicar um fenómeno sintáctico que teve modificações importantes na história do português entre a época medieval e a actualidade (e que é constantemente referido quando se compara o português europeu com o português do Brasil), adoptou uma metodologia comparativa observando simultaneamente o comportamento actual de diferentes línguas românicas (português, galego, espanhol, catalão, francês e italiano). O fenómeno em causa é a posição na frase dos pronomes pessoais átonos (me, te, lhe, o, a, nos, vos, lhes, os, as), também chamados pronomes clíticos ou apenas clíticos. Estes pronomes são hoje pós-verbais (ou enclíticos) em português europeu e galego, ao contrário do que se passa nas outras línguas românicas, em que são pré-verbais (ou proclíticos), desde que se pense apenas em determinadas orações. É preciso que essas orações não sejam subordinadas, não sejam coordenadas disjuntivas, nem contenham aquelas partículas que fazem com que o pronome átono se anteponha ao verbo, como é o caso da forma adverbial de negação não. Demonstrando estas posições enclíticas e proclíticas em português:

ÊNCLISE

PRÓCLISE

Orações simples

Com advérbio de negação

Vejo-me ao espelho

 

Não me vejo ao espelho

Orações principais

Orações subordinadas

Vou-te pedir [que sejas breve]

 

Vou-te pedir [que me digas uma coisa]

Orações coordenadas não-disjuntivas

Orações coordenadas disjuntivas

Ouço-te em silêncio mas quero-te responder

Ouço-te em silêncio e vou-te compreendendo

Ou te ouço em silêncio, ou tu te enfureces


Só nos exemplos da coluna da esquerda há contraste entre português e galego, por um lado, e as outras línguas românicas (veja-se a demonstração feita pela autora citada):

ÊNCLISE

 

PRÓCLISE

(por) Deste-lhe o livro?

 

(esp) Le diste el libro?

(gal) Décheslle o livro?

(cat) Li has donat el llibre?

 

 

(fr) Lui as-tu donné le livre?

 

 

(it) Gli hai dato il libro?


Para Ana Maria Martins, este fenómeno tem de ser compreendido num enquadramento mais extenso, que inclua outros contrastes entre os dois grupos de línguas românicas. Por um lado, quando em português e galego se quer responder afirmativamente a uma pergunta, dando-lhe a resposta mínima, usa-se o verbo; nas outras línguas, usa-se a forma correspondente a sim:

ÊNCLISE

(e resposta mínima afirmativa)

 

PRÓCLISE

(e resposta mínima afirmativa)

(por) Deste-lhe o livro?

Dei

 

(esp) Le diste el libro?

(gal) Décheslle o livro?

Dei

 

(cat) Li has donat el llibre?

Si

 

(fr) Lui as-tu donné le livre?

Oui

 

 

(it) Gli hai dato il libro?


Por outro lado, também o português (e, em certa medida, o galego) se caracterizam por poderem elidir, em certas construções, o complemento do verbo e alguns adjuntos (o nome técnico dado pelos generativistas a este fenómeno é o de construção de VP nulo). Retomando os exemplos acima utilizados, mas substituindo as respostas mínimas afirmativas por respostas alargadas, vêem-se sublinhados em espanhol, catalão, francês e italiano os complementos verbais que em português e galego se podem omitir regularmente (não têm, nestas duas línguas, uma ocorrência obrigatória):

ÊNCLISE

(e VP nulo)

PRÓCLISE

(e impedimento de VP nulo)

(por) Deste-lhe o livro?

Sim, dei

 

(esp) Le diste el libro?

Sí, se lo di

(gal) Décheslle o livro?

Si, dei

(cat) Li has donat el llibre?

Si, l' hi he donat

 

 

(fr) Lui as-tu donné le livre?

Oui, je le lui ai donné

 

 

(it) Gli hai dato il libro?

Sì, gliel ho dato


Surge então a hipótese de haver uma mesma característica sintáctica (o termo técnico é uma mesma propriedade gramatical), partilhada pelo português e o galego, mas não pelas outras línguas românicas, que explique a coocorrência de ênclise, resposta mínima afirmativa verbal e VP nulo. A proposta de Ana Maria Martins é a de português e galego terem a sua hierarquia de constituintes frásicos dominada por uma categoria abstracta (Sigma, ou S, em abreviatura) que se caracteriza por atrair o verbo para a sua posição sintáctica (diz-se, por isso, ter traços-V fortes), ao contrário das outras línguas românicas cujo Sigma terá traços-V fracos, não atraindo as formas verbais. Esta "atracção" consiste naquilo a que se chamou acima movimento para verificação de traços. Na resposta mínima afirmativa, o verbo português e o galego movem-se para essa posição Sigma, enquanto nas outras línguas o que para aí se move são as formas não verbais , si, oui e . Nas construções com pronome clítico, o verbo do portugês e do galego, sendo movido para Sigma, que é uma categoria dominante, portanto alta na hierarquia (o que se manifesta em posições à esquerda na sintaxe visível), passa a preceder o pronome. No fundo, nas formas deste-lhe do português e décheslle do galego, é o verbo que precede o pronome e não o pronome que lhe sucede. Nas construções com VP nulo, um constituinte formado pelo verbo e por um seu complemento não realizado (a isto se chama uma categoria vazia) move-se, no seu conjunto, para a mesma categoria Sigma, o que não acontece em espanhol, catalão, francês ou italiano.

Do ponto de vista histórico, estas propriedades gramaticais diversas apresentadas pelas línguas românicas assumem o carácter de um arcaísmo da língua portuguesa e da língua galega e uma inovação das restantes. Quer em latim, quer em espanhol medieval e clássico se podia encontrar a tal categoria Sigma com traços-V fortes que sobrevive em português e galego, como o demonstra Ana Maria Martins:

- Em latim a resposta mínima afirmativa era dada com o verbo: Fuistin liber? Fui (Foste um homem livre? Fui), lê-se em Plauto.

- Em espanhol dos séculos XII-XIII, a mesma resposta mínima afirmativa verbal pode ler-se no Cid: Veindes? …-Vengo. Em textos espanhóis do século XV, ainda se encontram exemplos como, Quiéreslo saber? -Quiero.

Ao longo da história do português, se bem que a categoria Sigma se tenha mantido sempre com traços-V fortes, houve uma evolução não linear dos pronomes átonos na sua posição em relação ao verbo. Entre o século XIII e o século XVI foi-se tornando cada vez mais frequente a ocorrência dos pronomes átonos antes do verbo (posição proclítica, portanto), resultando daí uma ordem de palavras que Ana Maria Martins interpreta como marcada enfaticamente. Aquela ordem Verbo-Pronome átono pôde, ao longo da Idade Média, ser invertida para transmitir a ideia de ênfase. Acontece, contudo, que pelo século XVI a ordem marcada se tornou tão frequente que a noção de que ela era excepcional se perdeu. No século seguinte terá sido substituída por aquela que a gramática do português oferece como ordem natural: primeiro o verbo, depois o pronome átono. Ou seja, não havendo a indicação de que o pronome a anteceder o verbo era uma construção enfática, por ter deixado de ser minoritária, tomou-se essa construção como sendo simples. Mas isso contrariava a gramática do português que, com o seu verbo a ocorrer em Sigma, o tinha regularmente antes do pronome átono. Daí que tenha desaparecido a construção proclítica.

Os números apresentados por Ana Maria Martins (op. cit. p. 56), encontrados em documentação notarial portuguesa dos séculos XIII a XVI, demonstram o caminho percorrido na perda da pertinência enfática da ordem pronome átono (ou clítico) seguido do verbo:

 

séc XIII

séc XIV

séc XV

séc XVI

Clítico-Verbo

6,7%

27%

84,4%

100%

Verbo-Clítico

93,3%

63%

15,6%

0%

 

Atestações em documentos destas sucessivas épocas,

uns do Noroeste de Portugal (simbolizados NO)

e outros da região de Lisboa (simbolizados Lx)

Id. pp.60-76:

 

Século XIII

(NO, 1273) é Móór eanes obligouse a dar os filhus a outorga

(Lx, 1290) presente fuy e esta procuraçõ cõ mha mãão propria escreuy e rapeyaa e emmendeya na oytaua regra no logo que diz Achelas

(NO, 1277) e o dito Steuã díaz u octorgou

Século XIV

(NO, 1321) E doulhy comprido poder pera partir e sortes deytar e traijtos meter

(NO, 1397) E o dicto Juiz lhe Mandou per tres ou quatro vezes Ao dicto Nicollaao stevez Almuxriffj que veesse com os dictos Autores

Século XV

(NO, 1408) e façouos della doaçom Antre vjuos

(NO, 1414) e xe lho obrigem A lhas defender e lhas Asy darem desëbargadas

Século XVI

(Lx, 1532) e prometeo e se obrigou de lhe manter esta vëda

(Lx, 1544 e desta maneira os ha ella dita senhora dona guyomar por Reçebidos em sy 


Bibliografia

CHOMSKY, Noam, 1995, The Minimalist Program. Cambridge, Mass, MIT Press.

RADFORD, Andrew, 1997, Syntactic Theory and the Structure of English. A Minimalist Approach. Cambridge, Cambridge University Press.

RAPOSO, Eduardo Paiva, 1992, Teoria da Gramática. A Faculdade da Linguagem. Lisboa, Editorial Caminho.