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Boa Esperança, passagem do cabo da

A mundivisão da Idade Média, patente nos mapas chamados T-O, dividia o mundo em três partes (Europa, Ásia e África), formando um círculo rodeado de água por todos os lados. Tratava-se de uma representação convencional em que a terra emergia do oceano, estando os três continentes separados entre si por três grandes cursos de água: Don (entre a Europa e a Ásia), Mediterrâneo (entre a Europa e a Ásia), e o Nilo (entre a África e a Ásia). Os continentes eram todos circumnavegáveis, comunicando pela orla marítima que a todos rodeava.

A partir dos princípios do século XV, porém, o aparecimento no Ocidente da tradução da Geografia de Ptolomeu impôs-se rapidamente como padrão do pensamento geográfico. Na realidade não é seguro que o texto que correu correspondesse exactamente ao que pensava o geógrafo alexandrino; mas o que está verdadeiramente em causa é o que os eruditos europeus acreditavam que tivesse sido a lição ptolemaica.

De acordo com o texto divulgado a partir de então em múltiplas cópias manuscritas, e desde 1477 por via impressa, os oceanos eram grandes mares fechados e rodeados por terra, não havendo assim intercomunicação entre o Atlântico e o Índico. Este novo conceito ganhou tal expressão que um emissário do rei português que foi verificar o estado de progressão do mapamundo encomendado por D. Afonso V ao cartógrafo italiano Fra Mauro (o qual foi concluído em 1459), ao verificar que, no fundo, era um mapa T-O, foi de opinião que se devia concluir a encomenda apenas para não perder a quantia que o monarca já avançara. Isto é: como mapa T-O que era “provava” a circumnavigabilidade de África, mas não era nisso, portanto, que os geógrafos mais conhecedores da época acreditavam.

Ao dobrar o cabo da Boa Esperança, na viagem de 1487-1488, Bartolomeu Dias operou uma verdadeira revolução geográfica: mais do que provar a intercomunicabilidade do Atlântico e do Índico, a viagem deixou claro que o mundo não era como Ptolomeu tinha pensava (ou a Europa do tempo julgava que ele tinha pensado). Editada sete vezes entre 1477 e 1490, a Geografia esteve por esse motivo fora dos prelos até 1507 (segundo a explicação de Armando Cortesão), altura em que passou a apresentar as “tábuas novas”, que mostravam já a comunicação entre o Atlântico e o Índico. Mas a edição continha ainda as tábuas antigas, em que essa ligação não figurava, prova suficiente do peso da herança clássica na formação intelectual da época, ainda que desmentida pela experiência concreta das navegações.

Francisco Contente Domingues

Bibliografia

CORTESÃO, Armando, História da Cartografia Portuguesa, 2 vols., Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1969-1970.

RANDLES, W. G. L., Da terra plana ao globo terrestre: uma rápida mutação epistemológica: 1480-1520, Lisboa, Gradiva, 1990.

WASHBURN, "A Proposed Explanation of the Closed Indian Ocean on Some Ptolemaic Maps of the Twelfth-Fifteenth Centuries", in Revista da Universidade de Coimbra, Vol. XXXIII, pp. 431-441; Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, série separatas 177, 1985.

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